A SEMANA EM QUESTÃO #01


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EDITORIAL

Inauguramos esse mês uma nova experiência do além-da-aula: nosso caderno A SEMANA EM QUESTÃO, onde apresentamos trechos de entrevistas, comentários e provocações sobre temas de interesse. O objetivo é abrir possibilidades, apresentar diferentes formas de olhar para um problema de modo a estimular aquilo que C. W. Mills chamou de “imaginação sociológica”. Assim, pretendemos contribuir para a construção de um debate público que coloque os temas em perspectiva, que fuja da discussão moral e da polarização entre “alienados” e “conscientes”. Privilegiamos, sempre que possível, mídias alternativas confiáveis. Nessa primeira edição abordamos a premiação do Oscar, os turbantes e apropriação cultural, a flexibilização do trabalho e o Uber e a privatização da CEDAE.

O PRIMEIRO OSCAR

O primeiro Oscar, entregue em 1929, quando o prêmio ainda nem tinha esse nome, foi para um filme sobre pilotos de guerra. As cenas dos aviões realizando manobras no céu foram a grande atração, como mostram os jornais da época, mas hoje, quase 70 anos depois, chama mesmo a atenção a amizade entre os homens. Quando será que "ser homem" virou sinônimo de não construir relações de amizade com afeto? Quando será que o cinema deixou de lado o carinho entre amigos para construir a figura do machão? Não diga que sempre foi assim. Não foi.

2016: O ANO DO OSCAR BRANCO

#OscarSoWhite ou Oscar Branco Demais, assim foi apelidada cerimônia do ano passado. O nome veio de uma campanha lançada pela jornalista April Reig no Twitter questionando a ausência total de atrizes e atores negros indicados nas principais categorias de atuação (melhor atriz, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e melhor ator coadjuvante). A cerimônia foi apresentada pelo comediante Chris Rock que fez da campanha um mote para suas falas durante a entre dos prêmios. A Os membros votantes da Academia até o ano passado eram 76% homens e 93% brancos. De lá para cá, Cheryl Boone, a primeira presidente negra da associação, realizou uma série de mudanças se comprometendo a dobrar a presença de mulheres e aumentar a diversidade. Trata-se de uma questão simples: se não há diversidade entre os membros votantes, não haverá diversidade entre os indicados. Esse ano, dos 20 indicados para os prêmios de atuação, 6 são atrizes ou atores negros. Um paralelo sobre representatividade, porém, coloca a pulga atrás da orelha. Será que o simples aumento da diversidade dos membros basta? A experiência brasileira com pouquíssimos representantes negros no Congresso Nacional nos mostra que não é tão simples assim.

UBER VAI PARA A JUSTIÇA

Essa semana uma decisão inédita considerou que a empresa do aplicativo Uber deveria pagar indenização a um trabalhador. Ao fazer isso, a Justiça considera que os motoristas que utilizam o aplicativo têm um vínculo de trabalho com a Uber e são considerados como funcionários da empresa. A Uber, por sua vez, diz que é o motorista que contrata o serviço do aplicativo e não o inverso e deve recorrer. Em Campinas a legalização do aplicativo foi discutida durante a semana e ganha força a proposta de limitar o número de motoristas.

A CORROSÃO DO CARÁTER (RICHARD SENNETT)

Neste livro, o sociólogo entrevista funcionário da ATT e questiona as mudanças do capitalismo flexível. De acordo com o autor, essas novas relações de trabalho criam novas formas de controle, garantem menos direitos e mudam o caráter pessoal do trabalhador, que se torna mais imediatista, angustiado e sente a necessidade constante de correr riscos.

PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

Nesta segunda-feira, dia 20, foi aprovado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) a privatização da companhia de água e esgoto Cedae. A venda da empresa estatal é parte de um projeto de recuperação fiscal. Isso quer dizer que o governo estadual do RJ está devendo dinheiro e como condição para negociar a dívida e realizar novos empréstimos o governo federal colocou algumas condições, como a diminuição de gastos públicos. A questão que se coloca é se essa é de fato uma boa saída para a crise. O Instituto Trata Brasil lançou nessa semana os dados atualizados sobre saneamento básico no Brasil. De acordo com a pesquisa 83,3% dos brasileiros têm água tratada, mas apenas 50,3% têm esgoto. Veja ao lado o infográfico publicado pelo portal G1 com a evolução do saneamento nos últimos 10 anos. Durante a crise hídrica de 2014 e 2015 em São Paulo, não faltaram geólogos culpando a privatização da Sabesp.  Olhar para os documentos da Sabesp ajudaria, mas por aqui o governador impôs sigilo à toda a papelada. Será que estamos cometendo duas vezes o mesmo erro?

DOIS TURBANTES

A discussão sobre o uso de turbantes tomou as redes sociais desde o dia 4 de fevereiro, quando uma mulher postou o seguinte texto, seguido da hashtag #VaiTerTodosDeTurbanteSim. “Vou contar o que houve ontem, pra entenderem o porquê de eu estar brava com esse lance de apropriação cultural: eu estava na estação com o turbante toda linda, me sentindo diva. E eu comecei a reparar que tinha bastante mulheres negras, lindas aliás, que tavam me olhando torto, tipo ‘olha lá a branquinha se apropriando da nossa cultura’, enfim, veio uma falar comigo e dizer que eu não deveria usar turbante porque eu era branca. Tirei o turbante e falei ‘tá vendo essa careca, isso se chama câncer, então eu uso o que eu quero! Adeus’. Peguei e saí e ela ficou com cara de tacho. E, sinceramente, não vejo qual o PROBLEMA dessa nossa sociedade, meu Deus”

Leia um trecho do texto de Ana Maria Gonçalves para o jornal The Intercept sobre a questão: “No Brasil, [os descendentes dos africanos das diásporas] não podiam falar suas próprias línguas, manifestar suas crenças, serem donos dos próprios corpos e destinos. Para que algo fosse preservado, foram séculos de lutas, de vidas perdidas, de surras, torturas, ‘jeitinhos’, humilhações e enfrentamentos em nome dos milhares dos que aqui chegaram e dos que ficaram pelo caminho. Como resultado disto, somos o que somos: seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui. (...) Viver em um turbante é uma forma de pertencimento. (...) O turbante que habitamos não é o mesmo. O que para você pode ser simples vontade de ser descolado, de se projetar como um ser livre e sem preconceitos, para nós é um lugar de conexão.”