Questões Indígenas

DIREITO ORIGINÁRIO

De acordo com texto do Ministério Público Federal, publicado em 07.04.2017, “A Constituição de 1988 garantiu aos povos indígenas não somente o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, mas também estabeleceu que os direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas são de natureza originária. Ou seja, os direitos dos índios às terras são anteriores até mesmo à formação do Estado brasileiro e existem independentemente de reconhecimento oficial. Nesse sentido, a demarcação de Terras Indígenas seria ato meramente declaratório, já que a própria Constituição garante aos povos indígenas o usufruto exclusivo e a posse permanente das terras. As terras indígenas são propriedade da União, mas de posse permanente dos índios.”


TESE DO MARCO TEMPORAL

Durante o julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa do Sol, o STF utilizou uma teoria que ficou conhecida como “teoria do marco temporal da ocupação” dando uma interpretação bem específica ao artigo 231 da Constituição. De acordo com a interpretação, deveriam ser consideradas “terras tradicionalmente ocupadas”, as terras que estavam ocupadas na data de 5 de outubro de 1988.
A interpretação favorece os ruralistas e coloca uma série de problemas para os povos indígenas: forma como interpretamos “terra ocupada”, valendo-nos da ideia de produtividade ou de habitação permanente não é igual em todas as culturas indígenas; durante o período da ditadura civil-militar que antecedeu à Constituição, os povos eram sistematicamente perseguidos e viviam em situação de vulnerabilidade, muitas vezes tendo que sair de seus territórios; a forma de comprovar a permanência ou um conflito que justifique a ausência talvez faça sentido para nossa cultura que tem uma tradição de registros materiais, mas para uma cultural baseada na oralidade essa comprovação é quase impossível; se eles não estavam nas suas terras, onde estavam e por quê? Isso será investigado como parte do processo para garantir essa ou outra demarcação? É bem certo que não.

[Essas e outras informações podem ser encontradas no texto “O ‘Marco Temporal’ e a reinvenção das formas de violação dos direitos indígenas” do último compêndio do ISA “Povos Indígenas no Brasil: 2011-2016”]

QUEM DEMARCA? PEC 215 E O FIM DA FUNAI
Hoje as demarcações são teoricamente feitas pela Funai, mas estão paradas. Nenhuma terra foi demarcada desde abril de 2016 e há 72 demarcações aprovadas esperando homologação do presidente interino Michel Temer (Nexo Jornal). Além disso, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC215), que circula desde 2000 na Câmara, foi reativada e aprovada por uma Comissão Especial presidida por Osmar Serraglio (ruralista e atua Ministro da Justiça) em 2015. Para entrar em vigor precisa passar pelo plenário da Câmara e pelo Senado. Se isso acontecer, emenda-se a Constituição transferindo da Funai (órgão do Executivo) para o Congresso (legislativo) o poder de decidir sobre a demarcação das terras indígenas. Vale lembrar que a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), também conhecida como “bancada ruralista”, é uma das mais fortes na Câmara com 207 deputados.


CPI FUNAI-INCRA E OS “FALSOS ÍNDIOS”

No dia 3 de maio de 2017 foi criada, sob a liderança do presidente da bancada ruralista, o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), uma comissão para identificar supostas fraudes nas demarcações indígenas. O documento sugere a extinção da Funai e o indiciamento de dezenas de pessoas que seriam, de acordo com seus relatores, “falsos índios”, como Babau, líder dos Tupinambá de Olivença. Nas palavras de Leitão: "Tido como a liderança mais proeminente da pretendida Terra Indígena Tupinambá de Olivença, o cacique Babau é um daqueles que não apresenta fenótipo dos primitivos habitantes das Américas, e, sim, da África Negra". Será que essa definição de índio que utiliza fenótipo ou uma suposta raça biológica como critério é válida?


QUEM É ÍNDIO?

O portal Mirim – Povos Indígenas do Brasil traz uma definição que ajuda a pensar. “Antes de tudo, é índio quem se identifica com uma comunidade indígena e é visto por ela como um membro.” Podemos pensar em outros critérios, como as relações de parentesco e descender dos povos que habitavam originalmente as Américas antes da colonização europeia, mas a definição inicial parece ser a que melhor evidencia que se trata de uma questão de etnia e não de raça ou nação.


FALSOS ÍNDIOS?

Se a definição tem a ver com cultura, com autoafirmação e reconhecimento do grupo, é possível classificarmos pessoas como falsos índios usando um critério estético como o do deputado Nilson Leitão ou um critério de uma suposta pureza? A campanha do Instituto Socioambiental (ISA) #menospreconceitomaisíndio questiona: “se você não é mais igual aos seus tataravôs e não tem sua identidade questionada por isso, porque os índios não podem também mudar e ainda assim continuar a ser índios, com todos os seus direitos respeitados?”.


TERRA ENCHE BARRIGA?

“O que acho é que vamos lá ver onde estão os indígenas, vamos dar boas condições de vida para eles, vamos parar com essa discussão sobre terras. Terra enche a barriga de alguém?” Osmar Serraglio ministro da Justiça, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, em março de 2017. De acordo com esse pensamento, o problema dos povos indígenas seria um problema exclusivamente de fome e não de terras. Assim, seria solucionado com programas sociais e não com demarcações. São pobres. Isso, sendo generoso na interpretação, pois tenho minhas dúvidas se era da barriga dos povos indígenas que Serraglio falava...


O PEDÁGIO INDÍGENA

Um dos casos mais polêmicos e mais divulgados pela mídia é um bom exemplo para pensar sobre essa questão. “Índios cobram pedágio de até R$100 em rodovia de MT” foi a manchete do portal G1. Trata-se do povo Enawenê-Nawê. Basta ler alguns comentários para entender o risco que correm os povos indígenas hoje frente ao ódio de setores da população brasileira. O que a notícia não mostra é a situação de desespero desse povo. Desde a construção de das dez centrais hidrelétricas no Rio Juruena a obtenção de peixes para alimentação e rituais de apaziguamento dos seres-espírito (o ritual Iyaõkwa, reconhecido pelo Iphan como Patrimônio Cultural do Brasil) na aldeia foi tão prejudicada que os Enawenê-Nawê tiveram que recorrer a centros de piscicultura para comprar peixes. Com que dinheiro? “Se os não indígenas barram o rio, interrompendo aquele que é, por excelência, o fluxo dos deslocamentos dos Enawenê-Nawê; estes respondem interrompendo o fluco rodoviarista, o que melhor caracteriza a sociedade brasileira”, escreve a antropóloga Juliana de Almeida, do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). A tensão entre indígenas e não-indígenas se agravou em 2015 quando um jovem indígena foi baleado por um caminhoneiro e, dois meses depois, dois rapazes não-indígenas que tentaram furar o bloqueio realizado pelo grupo. Vale ressaltar que assim como o pedágio cobrado pelos Enawenê-Nawê, a construção da estrada em 1997 também foi ilegal.

SEM RIO NÃO TEM PEIXE

Algo similar aconteceu com os Juruna, como relata Bel Juruna em entrevista à repórter Eliane Brum: “Eu fui criada pelo meu pai comendo peixe com farinha. E estava criando meus filhos assim. A gente não precisava de muito dinheiro. Agora, que não tem mais peixe, a gente precisa de dinheiro. E as crianças estão comendo carne de boi e frango que a gente compra na cidade, enlatados, salsichinhas e miojo, que é o que mais tem por aqui. E estão adoecendo”. Restringir os problemas indígenas à fome não é ignorar que a fome foi estabelecida por transformações que os não-indígenas impuseram às comunidades indígenas?


E O RIO MORREU

O pesadelo dos Juruna e dos Enawenê-Nawê é ainda mais visível entre os Krenak. Esse povo, composto hoje por 126 famílias, vive às margens do Rio Doce, que morreu enterrado pela lama após o crime ambiental da Samarco. A água sagrada do Watu, o rio que permitia a pesca, a irrigação, os banhos e mesmo a hidratação dos Krenak, agora está contaminada. De um dia para o outro as sete aldeias foram forçadas a se reinventar e a procurar fontes de renda para conseguir garantir sua sobrevivência pelo consumo. Como disse um agente da Funai aos repórteres da Agência Pública: “Não fale a palavra Samarco. É amaldiçoada, assim como o rio está amaldiçoado”.


O KRENAK QUE NOS OLHA

Com letra de Chico César e participação de diversos artistas como Gilberto Gil, Criolo e Zeca Pagodinho, o clipe “Demarcação Já!” foi lançado durante o dia do índio. Imagens e mensagens belas e fortes se intercalam em uma produção maravilhosa. No oitavo minuto, uma imagem chama a atenção: Aílton Krenak nos olha nos olhos em silêncio. O mesmo Ailton Krenak que falou na Assembleia Constituinte reivindicando o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas enquanto se pintava com tinta preta de jenipapo, tal qual nos rituais de luto, o Krenak que viu Watu morrer e a Funai ser desmontada, nos olha nos olhos e não fala nada. Precisa?

[Veja o clipe em https://www.youtube.com/watch?v=wbMzdkaMsd0 e a manifestação de Ailton Krenak na Constituinte em https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q]

QUE FUTURO? O SUICÍDIO DE JOVENS INDÍGENAS

Uma pessoa indígena se mata no Brasil a cada três dias. Em algumas regiões os número são ainda mais alarmante. Na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, um terço dos jovens (entre 10 e 19 anos) se mataram entre 2003 e 2013. Na cidade de Tacuru, no mesmo período, a taxa foi de 100%, ou seja, todos os jovens se mataram.

GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO

Falamos muito de genocídio, a exterminação física de um povo, ao comentar sobre o nazismo nas escolas. E o genocídio dos Areweté, reduzidos a menos de uma centena de pessoas ou de qualquer um dos outros povos indígenas perseguidos? Por que não causa a mesma comoção entre a população brasileira? Além da morte física, as questões indígenas nos mostram uma outra preocupação, que a morte de um modo de vida: o etnocídio. Ao impor mudanças ambientais radicais, deslocamentos territoriais e ameaças constantes, forçamos um processo de aculturamento e assimilação sem escolha, que acaba com a vida de um povo, não a vida física, mas a vida tal como ela fazia sentido ser vivida para eles.

O ÍNDIO E O POBRE

“A gente vira índio ou vira indigente” diz um cartaz criado pelo poeta André Vallias para a campanha “Índio é nós”.  Parece estranho, mas é que pobre se define pelo que ele não tem e pelo o que precisa ter. Índio não, índios não. Veja o que diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “O índio, ao contrário, é uma palavra que acho que só existe no plural. Índio, para mim, é índios. É justamente o contrário do pobre. Eles se definem pelo que têm de diferente, uns dos outros e eles todos de nós, e por alguém cuja razão de ser é continuar sendo o que é. Mesmo que adotando coisas da gente, mesmo que querendo também a sua motocicleta, o seu rádio, o seu Ipad, seja o que for, ele quer isso sem que lhe tirem o que ele já tem e sempre teve. E alguns não querem isso, não estão interessados. Não é todo mundo que quer ser igual ao branco. O que aconteceu com a história do Brasil é que foi um processo circular de transformação de índio em pobre. Tira a terra, tira a língua, tira a religião. Aí o cara fica com o quê? Com a força de trabalho. Virou pobre.”